Sai da frente que lá vem o Jeca Tatu
O Estado de S. Paulo, capa Caderno 2, 24 de fevereiro de 1988Maria da Glória Lopes
Aquele caipira de fala arrastada, calça pega-frango e botina vai invadir a sua casa. A TV Cultura mostra a partir de hoje três filmes de Mazzaropi. É a verdadeira malícia do povo brasileiro.
Mazzaropi fez algumas profecias durante sua vida. Uma delas, a mais notável e patética, ganha corpo há algum tempo: “Os críticos não gostam do que eu faço”, dizia, “mas quando eu morrer vão fazer festivais com meus filmes e haverá alguém capaz de dizer até que eu sou um gênio. Depois que eu morrer, isso já não tem mais importância”. Elevado a gênio ele ainda não foi, mas quem assistir ao Festival Mazzaropi, que a TV Cultura apresenta de hoje a sexta-feira, sempre às 22h25, perceberá um novo tratamento à obra do maior sucesso de bilheteria do cinema brasileiro, insistentemente acusado de medíocre pela crítica.
“Esta é uma oportunidade para reavaliarmos o trabalho de Mazzaropi, todo ele muito bom do ponto de vista cinematográfico”, diz o apresentador do programa e crítico de cinema Luciano Ramos. “O primeiro filme do Festival, Sai da Frente, é uma comédia avançada para a época e na minha opinião, a primeira na história do cinema nacional. Até então, as comédias eram pantomimas que os atores faziam em frente à câmera. E Sai da Frente não é uma história e sim fragmentos de várias, uma associação de quadros que lembram muito as comédias que viriam nos anos 60. ”
Candinho, o longa-metragem programado para amanhã, possui um detalhe que poucos na ocasião observaram: trata-se de uma adaptação livre do clássico do otimismo, Candide, de Voltaire. Coloca o personagem humilde do interior em confronto com a deslumbrante cidade grande. Para Ramos, um retrato da própria Vera Cruz, onde um “bando de jecas tentava fazer cinema brasileiro com técnicos contratados no Exterior”. E Nadando em Dinheiro, o último do Festival e continuação de Sai da Frente, nada mais é do que a premonição de crise econômica que começaria a se acentuar nos anos seguintes.
A Vera Cruz preferia investir alto nos chamados filmes de arte, muito parecidos aos europeus, e não entendia bem por que produções modestas como essas faziam tanto sucesso. Mazzaropi entendia, e depois do terceiro filme abandonou a Vera Cruz para abrir sua própria produtora – a PAM (Produções Amácio Mazzaropi), desfeita somente quando ele morreu, em junho de 1981. Na PAM ele produziu e dirigiu os 24 longas-metragens, nos quais atuou consolidando como quis o seu personagem caipira de fala arrastada, camisa xadrez sempre abotoada até o pescoço, paletó apertado, calças curtas sobre botas de cano curto e um toco de cigarro no canto da boca. Uma espécie de Jeca Tatu modernizado, que ele cultivava desde os tempos do teatro mambembe, que ele abandonou para ingressar no cinema a convite da própria Vera Cruz.
A figura do caipira do interior, bondoso e ingenuamente maroto, arrastava multidões aos cinemas. Seu público sabia que, invariavelmente, todo dia 25 de janeiro havia no cine Art Palácio a estréia de mais uma aventura do Jeca. Suas comédias inofensivas eram sempre rodadas nos estúdios da PAM, em sua fazenda de Taubaté. Inofensivas, mas às vezes com títulos sugestivos ou de duplo sentido, como Zé do Piriquito, A Banda das Velhas Virgens, No Paraíso das Solteironas e O Puritano da Rua Augusta, que nada tinham de erótico.
Mazzaropi tornou-se logo um invejado produtor milionário. Os críticos limitavam-se a ver nele apenas o empresário bem-sucedido, e, depois, ignoraram seu trabalho por completo. Às acusações, respondia apenas que “bom filme é filme que o povo gosta. Tudo o que tenho devo ao meu público. Quando eu morrer, tudo isto vai ficar para o cinema nacional”. Quando morreu, seu espólio causou um ruidoso escândalo – já que ele não tinha herdeiros diretos. Metade de sua obra – 12 filmes – ficou com os parentes de sua mãe, Clara Ferreira, e a outra metade com os funcionários da PAM. Os negativos dos 24 filmes estão preservados na Fundação Cinemateca Brasileira.
Por causa da disputa de sua herança, o Jeca saiu do circuito cinematográfico e só retornou em dezembro de 1986, quando a BDF (Brasil Distribuidora de Filmes) comprou os direitos de distribuição. O primeiro a reestrear, Um Caipira em Bariloche, novamente bateu recordes de bilheteria na Capital e no Interior. Mas os proprietários da BDF não tinham a mesma sabedoria de Mazzaropi e em poucos meses relançaram mais três, Uma Pistola para Djeca, Jeca e seu Filho Preto e O Corintiano, chegando a um fracasso completo. “É muito fácil entender o fenômeno Mazzaropi”, explica Antônio Carlos Bocato, da BDF. “Ele é um humorista típico brasileiro. Ele fala a língua do povo. E é o povo do Mazzaropi que sustenta este País. Nós erramos nos relançamentos, é preciso deixar o público na saudade e fazer como ele, colocar no mercado apenas um filme por ano. Em junho voltaremos ao cinema com Jeca Contra o Capeta.” O mesmo problema não ocorre com o público de vídeo. A BDF vendeu para a Argovídeo os direitos de dez títulos para abastecer o mercado nos próximos seis meses. Dois já estão nas locadoras desde o mês passado – Um Caipira em Bariloche e O Corintiano, com um índice de procura “acima do previsto”, como constata Suresh Ramchandani, dono da Argovídeo, que se nega a revelar os números. “Nós escolhemos os títulos ao acaso, arriscamos e deu certo.
E o sucesso só se explica porque os filmes são muito bons.” Mas a melhor explicação para o fenômeno Mazzaropi foi dada pelo escritor Inácio Araújo. “A crítica nunca esteve com ele porque Jeca representa o Brasil subdesenvolvido, analfabeto, que ela não quer ver. Para o público, ele representa a vingança dessa massa de migrantes que vem do campo e se defronta com os códigos da cidade grande. É a malícia do campo contra a malícia da cidade. E a primeira ganha.”
NÃO DEIXE DE VER
Candinho
Brasil (SP), 1953, 1h35. Direção: Abílio Pereira de Almeida.
Com Mazzaropi, Marisa Prado, Ruth de Souza, John Herbert, Benedito Corsi, Adoniran Barbosa, Abílio Pereira de Almeida, Ayres Campos.
Mazzaropi interpreta personagem inspirado no ingênuo Candide, de Voltaire. Terceiro filme de Mazzaropi na Vera Cruz, onde aparece como um simplório rapaz do interior, órfão criado pelos donos de uma fazenda, apaixonado pela filha dos pais adotivos e obrigado a tentar a vida na “cidade grande”. Contém grande dose de sentimentalismo e é, justamente com Sai da Frente e A Carrocinha (na Brasil Filmes), dos melhores filmes de Mazzaropi.
Sai da Frente
Brasil (SP), 1951, 1h20. Direção: Abílio Pereira de Almeida.
Com Mazzaropi, Ludi Veloso, Vicente Leporace, Leila Parisi, Nieta Junqueira, A.C.Carvalho, Solange Rivera e o cão Duque.
O primeiro filme de Mazzaropi na Vera Cruz, primeira e mais autêntica fase dele. Ele interpreta Isidoro, dono de um caminhão de mudanças em cuja fachada se lê o mote Sai da Frente. Ele é contratado para fazer uma mudança de São Paulo a Santos. No trajeto, ocorre uma série de situações inesperadas. Incluindo o seqüestro de seu cão de estimação (Duque) e o encontro com os artistas de um circo mambembe, com uma noiva fugitiva, uma senhora ranzinza etc.
Nadando em Dinheiro
Brasil (SP),1952, 1h30. Direção: Abílio Pereira de Almeida. Com Mazzaropi, A. C. Carvalho, Nieta Junqueira, Liana Duval, Giordano Martinelli e o cão Duque.
Feito em seguida a Sai da Frente, o filme traz Mazzaropi novamente como o chofer de mudanças Isidoro – embora isso não fique bem explícito na história -, agora recebendo uma herança inesperada de um avô milionário. Assim, torna-se proprietário de 17 fábricas e patrão da 20 mil operários. Vivendo como um nababo em rica mansão, torna-se uma espécie de Midas. Aí começam os problemas: tudo o que toca transforma-se em dinheiro… Como livrar-se dessa situação? O final é inesperado, embora não totalmente original.