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“Querem que eu mude. Pra quê?”

Última Hora. junho de 1981.

Oswaldo Mendes

Ele costumava dizer:

“Esse pessoal me picha, mas, quando eu morrer, será que eles pensam que eu vou levar tudo isso comigo? Eu não construí um império de cinema, apenas criei condições para poder trabalhar, sem depender de ninguém. Tudo o que tenho, devo ao meu público. Quando eu morrer isso tudo que eu tenho vai ficar para o cinema nacional. Eu não vou poder levar nada disso. Então, por que eles me picham tanto?”

Ele fazia que não ligava, mas o fato é que Mazzaropi sempre se ressentiu de não ter merecido da crítica, dos “tais intelectuais”, como ele dizia, o reconhecimento pelo seu trabalho.

O que é que eles querem? Que eu perca dinheiro? Só é bom quem fracassa? Se eles querem que eu faça um filme que ninguém assista, isso não farei nunca. Não vou trair esse público só para que a critica fale bem de mim.”

Conversávamos muito sobre isso.

As vezes eu nem puxava o tema, mas o Mazzaropi fazia questão de lembrá-lo. Talvez por achar que eu fizesse parte desses “tais intelectuais”. Essa necessidade de reconhecimento estava presente desde muito tempo. Como ele não o obtinha das pessoas de cinema, parecia procurá-lo junto ao teatro.

Teatro que, na verdade, foi sua primeira e permanente escola.

Mesmo já suficientemente rico para viver dos seus filmes. Mazzaropi ainda encontrava tempo para sair por esse Brasil apresentando-se em palcos de cinemas e em picadeiros de circos mambembes do interior.

Filmes, parece que só via os seus.

Preferia freqüentar teatros. Acompanhou todos os espetáculos do Teatro de Arena, na fase mais política e criativa do grupo, na década de 60. Chegou a pedir argumentos e roteiros cinematográficos a Gianfrancesco Guarnieri (isso ele me disse, mas nunca xequei com o Guarnieri). Mas de todas as pessoas a quem pedia roteiros, Mazzaropi recebia (ele dizia) estórias que não tinham nada a ver com seu público.

“Eles querem que eu mude. Mas mudar pra que? Eu sei do que o público gosta e não vou ficar inventando.”

Mazzaropi via quase todos os espetáculos teatrais em cartaz na cidade. Alguns, via mais de uma vez. Elis Regina, que ele considerava a maior cantora do Brasil, tinha sempre Mazzaropi na sua platéia – “Falso Brilhante” ele assistiu no mínimo três vezes. Mas não era de marcar presença em camarins. Chegava ao teatro, comprava seu ingresso, assistia ao espetáculo e ia embora como uma pessoa qualquer.

O respeito que Mazzaropi tinha pelos “tais intelectuais”, em relação à imprensa transformava- se numa espécie de medo. Costumava dizer que fugia de repórteres como o diabo foge da cruz. Por que? “Esse pessoal só quer saber se eu estou rico, se ganho muito dinheiro com cinema. Ninguém pergunta nada sobre o meu trabalho. Daí eles vêm me entrevistar só para escrever o que lhes interessa. Estão sempre achando um jeito para meter o pau em mim”.

Foi numa reunião do antigo Instituto Nacional de Cinema que eu o conheci. A sede do INC aqui em São Paulo era num prédio da 24 de Maio, próximo ao Teatro Municipal. Havia uma solenidade de entrega de prêmios aos que mais haviam faturado com seus filmes. Mazzaropi era o primeiro. Começamos a conversar ali mesmo no INC. Ele arredio diante das perguntas do repórter. Eu, insistindo. Descemos para a rua. A conversa continuou no cafezinho de bar. Daí nos despedimos. Fui para a redação e entreguei a matéria. Dias depois, a entrevista já publicada, Mazzaropi liga para o jornal à minha procura.

“Você foi decente comigo. Não me esculhambou como costumam fazer. Aquilo nem foi uma entrevista. A gente apenas conversou sobre vários assuntos e eu nem me abri muito de medo do que sairia publicado depois. Eu não gosto de dar entrevista, mas quando você quiser é só me procurar.”

Foi assim que Mazzaropi, ficou sendo meu amigo. Quando lançou seu filme seguinte, telefonou. “Não estou querendo reportagem não. Quero que você esteja hoje na sessão das dez no Cine Art Palácio. Não precisa nem ver o filme, se não quiser. Quero só que você veja como é o meu público, como eles me recebem”. De fato, havia um toque mais caipira, mais tupiniquim, que roliudiano nas estréias de Mazzaropi no Cine Art Palácio. A periferia inteira vinha para o Largo do Paissandu. Os que não entravam, ficavam na porta esperando a chegada de Mazzaropi. Depois, antes do filme ser exibido, ele subia ao pequeno palco do Art Palácio, apresentava o elenco e técnicos que trabalharam no filme e dava um pequeno show, contando velhas piadas, cantando velhas canções.

Mas eu insistia, agora mais à vontade para dizer o que eu pensava. Sempre entendi que aquela identificação que o grande público tinha com o artista, impunha-lhe uma responsabilidade cultural, no mínimo. Achava que seus filmes podiam ir além daquela ingenuidade política, daquela visão primária do bem e do mal. E ele insistia. “Minha responsabilidade é com esse público, essa gente simples que só vai ao cinema uma vez por ano, quando eu lanço os meus filmes. Procuro dar a eles o melhor. Por isso, tenho muito cuidado na produção. Eu podia gastar muito menos que esse público iria me ver do mesmo jeito, mas eu prefiro que eles vejam uma coisa bem feita.”

Esse público agora está órfão. Mazzaropi lhe deixa de herança apenas seus filmes. Ao cinema brasileiro, ele deixa a sua PAM Filmes com amplos estúdios e o melhor equipamento que conseguiu adquirir. Aos que, como eu, aprenderam desde crianças, num cinema qualquer de uma cidade qualquer do interior, a rir com as aventuras do Jeca e, através dele, a se identificar com o cinema nacional, sempre ingênuo mesmo quando político, fica um vazio.

Ainda lembro da última vez que encontrei Mazzaropi, casualmente, meses atrás, à porta da PAM Filmes, ao lado do Cine Ouro no Largo do Paissandu. Ele estava feliz. Havia inaugurado o seu hotel em Taubaté, mas pouco falou a respeito. “Um dia você vai até lá e vê como é. Você e a Iracema são meus convidados. E o teatro, como vai o teatro? É preciso fazer voltar o Teatro de Revista, com muitos cenários, muitas plumas. Mas você já teve a curiosidade de ver quanto está custando uma pluma? É, eu acho que nunca mais vamos ter Teatro de Revista no Brasil.”

A notícia agora da morte de Mazzaropi me faz lembrar uma outra coisa que ele sempre me dizia.

“Pois é, falam mal de mim. Só quero ver quando eu morrer. Daí, vão fazer festivais com os meus filmes e tem gente que é capaz até de falar que eu fui um gênio. Quer saber? Deixa pra lá … Quando eu morrer, isso já não terá nenhuma importância…”