O Milagre
Jornal do Brasil, Caderno B, pg. 3 - 03 de agosto de 1979O padre, de joelhos e cabeça baixa, reza, sozinho na igreja. De repente aparece um ladrão, encosta o revólver na cabeça do vigário e avisa: é um assalto. Santo Antônio, rápido,desce do altar, apanha a caixa de esmolas e sai correndo.
Isoladamente esta cena de A Banda das Velhas Virgens interessa pouco. É só uma anedota ligeira, contada em meia dúzia de planos, três para o padre, o ladrão e a corrida do santo, três outros para o susto e a fuga do assaltante, a surpresa e a correria do padre para anunciar o milagre a todo mundo.
Nem uma idéia especialmente original, nem uma solução formal particularmente eficaz, esta anedota interessa mesmo é porque se encontra aí, no meio de um filme de Mazzaropi. Há mais de 20 anos, e sempre com o mesmo sucesso de público, ele vem repetindo um estilo de encenação simplório, onde a câmara se limita a registrar de um ponto qualquer as caretas e as falas afetadas dos intérpretes. Neste contexto a corrida do santo (a câmara abandona os personagens que falam, o padre e o ladrão, para mostrar uma ação que não precisa de palavras para ser entendida) aparece como uma solução altamente sofisticada.
Mazzaropi começou no cinema em 1952, como ator, na Vera Cruz. Dois anos depois esta tentativa de montar em São Paulo um grande estúdio segundo o modelo de produção norte-americano fracassava, e ele passou a produzir seus próprios filmes. Em 1959 cria a PAM Filmes, e desde então produz, escreve, interpreta e dirige um filme por ano, e invariavelmente se coloca entre os campeões de bilheteria.
Muito antes da recente organização de um sistema de promoção e de distribuição do filme brasileiro, Mazzaropi conseguia reunir um público com frequência superior ao de grandes produções estrangeiras lançadas aqui com grande suporte de publicidade. Em 1975, o filme de maior público foi Inferno na Torre (com 3 milhões 15 mil 950 espectadores), Mazzaropi teve com O Jeca Macumbeiro 2 milhões 503 mil 306 espectadores, superando Terremoto (1 milhão 904 mil 394) e Aeroporto (1 milhão 676 mil 363). Em 1974 Portugal Minha Saudade (com 1 milhão 924 mil 812 espectadores) superou O Exorcista, Operação Dragão e As Aventuras do Rabi Jacó. Em 1973 Um Caipira em Bariloche (1 milhão 791 mil 42 espectadores) teve público superior a O Destino do Poseidon e Horizonte Perdido.
Os títulos dos filmes muitas vezes fazem apelo a alguma coisa que está na moda, no cinema ou na televisão. Quando os italianos enchiam a tela com Djangos, Ringos e Gringos ele filmou Uma Pistola Para Djeca. Quando a novela Beto Rockfeller fazia sucesso ele filmou Betão, Ronca Ferro. Quando diabos e exorcistas tomavam conta dos cinemas ele filmou O Jeca Contra o Capeta. Depois que O Amuleto de Ogum abriu a conversa sobre a umbanda ele filmou o Jeca Macumbeiro. E agora, quando com frequência a discussão se fecha sobre a pornochanchada, ele filmou A Banda das Velhas Virgens.
Mas, em verdade, os títulos são pouco mais que trocadilhos. Não se tratam propriamente de cópias ou paródias.
A sugestão do título importa pouco, porque tudo se desenvolve em torno de um mesmo personagem, o Jeca, meio-bobo, meio-esperto, meio-trabalhador, meio-preguiçoso, quase todo o tempo com uma camisa quadriculada, chapéu meio-enfiado na cabeça, e um pito no canto da boca. O que importa mesmo é este herói, que fala desajeitado e anda mais desajeitado ainda, com as pernas tortas mal-equilibradas em cima das botas, com os braços se agitando assim como asas de um pássaro pesado e barrigudo, num último e inútil esforço para levantar vôo.
As razões do sucesso devem ser buscadas aí: na composição do personagem, e em duas ou três máximas que ele repete de filme em filme: o mundo, assim como está, dividido entre ricos e pobres, vai bem, pois, cada um a sua maneira, todos conseguem ser felizes. Basta guardar o coração puro. A idéia às vezes aparece diluída na conclusão da história, às vezes diretamente expressa num diálogo ou na canção sentimental invariavelmente enxertada na narração. O importante é não perder a fé, diz o Jeca, ninguém veio ao mundo só para gozar. Veio também para sofrer.
O que interessa é o personagem criado por Mazzaropi, o que ele diz, o que faz, seu jeito de se mexer. O cinema, neste quadro, vinha tendo uma função secundária. Era só um meio mecânico de registrar e duplicar a encenação, que em geral se fazia independentemente da câmera. E, como este meio mecânico não interessava em si mesmo, e se destinava a salas de projeção das periferias das grandes cidades ou salas mal-equipadas de cidades pequenas, o produto podia até mesmo se descuidar de certos rigores técnicos.
Com A Banda das Velhas Virgens o quadro geral se altera um pouco. A imagem está em foco e com colorido correto, o som está em sincronismo com o movimento labial.
A corrida do santo para salvar a caixa de esmolas é talvez o sinal mais evidente de uma preocupação com o veículo em si mesmo, agora que ele passou a ser consumido também nos cinemas das grandes cidades, agora que uma distribuição e uma promoção organizadas de outros filmes mostraram as reais possibilidades do mercado. Diante desta nova perspectiva, a câmera esquece o diálogo e sai correndo atrás do santo. É quase um milagre.