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Nem pornô, nem policial: Mazzaropi

Última Hora 22-23 de julho de 1978, p 11.

Está aí o cinema de Mazzaropi atraindo multidões, as multidões que se identificam com os problemas colocados na tela: o trabalhador oprimido, as relações marido-mulher, pais e filhos, religião, etc. Jeca e Seu Filho Preto, seu último lançamento, aborda o problema do racismo e o alia às diferenças sociais e culturais; mas esvazia a questão quando o racismo vira consangüinidade a impedir um casório. Mazzaropi fica assim: joga questões, tempera com humor, e o público ri até das impossibilidades de resolver qualquer coisa.

Mas, verdade seja dita, é o dele o cinema mais popular feito por aqui.

Não é à toa que Mazzaropi tem sucesso. Mazzaropi só tem sucesso porque seus filmes abordam problemas concretos, reais, que são vividos pelo imenso público que acorre a seus filmes. Não é só, porque é careteiro e tem um andar desengonçado. E porque põe na tela vivências e dificuldades de seus espectadores, e se assim não fosse, não teria o sucesso que tem. A temática de “Mazza” são problemas da terra, do camponês oprimido pelo latifundiário, dos intermediários entre o pequeno produtor agrícola e o mercado, das relações entre marido e mulher, pais e filhos, das religiões populares, etc. Há momentos claros e contundentes nos seus filmes. “Mazza” enfrenta delegados de polícia e fazendeiros. Neste último filme, Jeca e seu filho preto, cujo tema, como se sabe, é o racismo, ele declara, por exemplo, que o fazendeiro ganha no nosso trabalho e no aluguel de nossa casa. E o público do Art Palácio reage fortemente a afirmações desse teor.

Essa temática possibilita uma projeção do público sobre os filmes. O tratamento cômico e o jeito desengonçado do Jeca permite que o público, ao mesmo tempo em que identifica seus problemas na tela, ria deles e se libere de uma certa tensão. Possibilita que o público ria até de sua impossibilidade de resolver os problemas colocados pelos filmes. E justamente este, me parece, o ponto chave da dramaturgia de “Mazza” e de seu sucesso: possibilitar a identificação dos problemas e esvaziar qualquer atitude crítica diante deles. Desse ponto de vista, Jeca e seu filho preto, como muitos outros filmes dele, é exemplar e tem até um valor didático, de tão esquemático que é.

O fazendeiro quer impedir o casamento entre sua filha e o filho preto do Jeca. O problema do racismo está claramente vinculado no filme à uma relação entre classes sociais. Muitos diálogos ligam as dificuldades do preto na sociedade à pobreza, à falta de acesso à cultura. O problema é real e não tão mal colocado, mas já distorcido, pelo fato do racismo ser atribuído a um vilão – o mau fazendeiro – sendo que os outros personagens brancos e ricos não se opõem ao casamento. O racismo aparece assim como um problema que não diz respeito ao conjunto da sociedade, mas apenas a um mau-caráter. E para evitar qualquer dúvida, bota-se uma frase sonora na boca do promotor público: “Preconceito racial é uma torpeza”. E um primeiro esvaziamento da temática.

O segundo esvaziamento ocorre na revelação final, quando se fica sabendo que os namorados, a moça branca e o rapaz preto, são de fato semi-irmãos, resultado de uma “infidelidade” conjugal do fazendeiro. Conclusão: o fazendeiro queria impedir o casamento, não por racismo, mas devido a uma situação de consangüinidade dos noivos. Portanto, Jeca e seu filho preto acaba girando em torno de um problema que, em última instância, não existiu. Fica assim o dito pelo não dito.

Esse comportamento é característico de “Mazza”: levanta a lebre e, a seguir, esvazia tudo. Um objeto que aparece com freqüência em diversos de seus filmes, talvez possa ser encarado como símbolo desse comportamento: a espingarda torta. A espingarda é uma expectativa de agressividade, de enfrentamento dos problemas, de resposta à altura da situação, de defesa dos interesses do camponês. Mas, por ser torta, ela é também a negação de qualquer forma de ação. Um jogo entre a identificação dos problemas e um convite à passividade.

O cinema de Mazzaropi é reacionário e conservador, dizer isto não é novidade; mas o que não se diz é que esse cinema só é eficiente no seu conservadorismo e só representa um nível de consciência a que adere seu fiel público, porque é baseado em problemas reais e vividos, por esse público.

As importantes discussões que se desenvolvem atualmente sobre o que seja cinema “popular” não podem ignorar os filmes de “Mazza”. Não porque sejam produtos comerciais de grande audiência, nem porque se pensaria em imitar a linguagem desses filmes e enxertar nela mensagens não conservadoras, o que seria uma tolice. Mas porque esses filmes só têm um efeito alienante, na medida em que se comunicam com o público a partir dos seus problemas, canalizando sua tensão dentro de uma sociedade de classe.

Há muitas outras maneiras de abordar o cinema de Mazzaropi, mas desde já fica essa afirmação: o cinema de “Mazza” é um cinema poIítico atuante.